terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Geografia em quadrinhos: Joe Sacco e os palestinos

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Histórias em quadrinhos, por meio de sua estrutura narrativa combinada, baseada na linguagem visual e textual, oferecem, de modo inequívoco, representações e formas de percepção espacial que abordam uma série de temáticas associadas à cidade e ao aspecto urbano, a assuntos geopolíticos e ao horror/terror que despertam a possibilidade de análise geográfica do espaço cotidiano nos quadrinhos, sobretudo, a nosso ver, de enfoques factuais e expressão “realista”. Tratando-se de conflitos, o cotidiano da guerra e sua espacialidade são assuntos que os quadrinhos contemplam e que devem ser vistos como fecundos para a análise geográfica. Joe Sacco, por exemplo, foi inovador em seu enfoque ao realizar reportagens em quadrinhos, que contam com levantamento bibliográfico e fotográfico, recriando a história de seus entrevistados e as cenas que observou em campo, em cenários geográficos que representam o dia a dia dos palestinos.

Os quadrinhos de Joe Sacco oferecem representações espaciais de cenários complexos, ao recriar a espacialidade que objetiva ilustrar o cotidiano de populações em ambientes de guerra, isto é, o espaço vivido num contexto de guerra. Assim, sua abordagem, oferece visibilidade a indivíduos e a seu espaço de uma forma que, embora não verossímil a imagem real em sentido estrito, por se tratar de uma forma representacional, concebe uma interpretação visual e textual através da narrativa a partir do cotidiano dos personagens. Considerando essa possibilidade, sua obra consiste em uma profunda percepção espacial como fonte representacional do espaço vivido por personagens em situações de guerra. Embora não sejam fidedignas ao real, as cenas de terror e violência da guerra vivida pelos personagens veiculam, por conseguinte, uma percepção do ambiente, dos objetos e das relações de poder, portanto, de seus significados, servindo, assim, como fonte e meio de análise e interpretação do lugar e do espaço vivido por pessoas em ambiente de conflito. Dessa maneira, Joe Sacco retrata em suas obras, o cotidiano da opressão israelense nos territórios palestinos sob ocupação, portanto, da vida ordinária, em campos de refugiados, da miséria e da fome, das prisões e da mais brutal exclusão. 



Sobre o uso de quadrinhos em enfoques geográficos e estudo das obras de Joe Sacco, leia: 

MENDONÇA, M. J.; REIS, L. C. T. Percepção do Espaço Geográfico nos Quadrinhos. Nona Arte: Revista Brasileira de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos, v. 5, p. 55-65, 2016.

MENDONÇA, M. J.; REIS, L. C. T. Histórias em Quadrinhos: um campo recente da pesquisa em geografia sobre conflitos. GEO UERJ (2007), v. 0, p. 98-119, 2015.



terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Guerra regional e os desafios de Israel no sul do Líbano

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Nas últimas semanas, após realizar ataques seletivos de assassinatos dentro do Líbano, que incorreram na morte Saleh Al Aruri, subchefe do Hamas, e de Wissam Tawil, comandante das forças Radwan do Hezbollah, Israel tem direcionado suas ações e concentrado equipamentos e tropas no norte do país, na fronteira com o Líbano e está a ameaçar os libaneses de ataques destrutivos contra Beirute e uma possível incursão dentro do território libanês, dando início, assim, a um novo cenário de guerra contra seus vizinhos, em âmbito regional. 

Todavia, o Hezbollah, representa um desafio muito maior para as tropas de Israel, do que o Hamas, em Gaza. No Líbano, Israel não rodeia o território como o faz na Faixa de Gaza, e muito menos controla a sua costa. Daí o Hamas e outros grupos palestinos não se beneficiarem, como o Hezbollah, do uso de fronteiras porosas com a Síria ou o controle dos portos marítimos e aeroportos a partir dos quais pode contrabandear armas do Irã.

Além disso, o Hamas não controla um Estado de governo soberano, tal como o Hezbollah, é influente na estrutura e administração estatal do Líbano. O Líbano embora um país pequeno, é muito maior do que a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia, e Israel, também, não possui penetração muito melhor no Líbano do que em Gaza ou na Cisjordânia. Em Gaza, apesar das dificuldades de lutar em ambiente urbano densamente povoado, o território é plano e facilmente acessível a partir de Israel, mas no sul do Líbano, ao contrário, o terreno é montanhoso e acidentado, com inúmeros vales, o que de todo modo atrasa e dificulta o deslocamento de equipamentos e veículos por estradas e rodovias que podem facilmente se transformar em pontos de emboscadas.

O Hezbollah hoje está mais preparado militarmente do que em 2006, quando foi capaz de resistir aos avanços de Israel no sul do país e impor uma derrota política ao seu adversário, e, como antes, continua entrincheirado nas colinas do sul do país e possui muitas bases e túneis operacionais naquela região, que como todos já sabem, são um problema para Israel. Vale lembrar ainda, que dessa vez, além do combate terrestre contra tropas do Hezbollah, Israel enfrentará ataques de mísseis em suas principais cidades e na capital, Tel Aviv, de uma forma, que ainda não tiveram que lidar. Embora Israel esteja a ameaçar o Hezbollah diariamente, uma aventura militar dentro do território libanês, seria um desafio muito maior do que a Faixa de Gaza e o Hamas, jamais foram.


Fonte: Wikipédia. 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Tanques vs Homens: quem está vencendo o combate em Gaza?

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça

No conflito em Gaza, combatentes, de ambos os lados, estão agindo com o propósito de modelar o espaço urbano, para abrir caminho para as operações militares e neste sentido israelenses e palestinos, estão a transformar profundamente a realidade do campo de batalha, em diferentes níveis e por meio de diferentes estratégias e tecnologias empregadas no espaço urbano. Assim, para compreender e realizar uma avaliação criteriosa do que está se passando no campo de batalha em Gaza, realizamos durante 100 dias uma detalhada cobertura das operações em Gaza, analisando principalmente muito material de vídeo, que estão circulando na internet, e por meios deles, interpretamos e analisamos diferentes trajetórias e métodos de combate urbano, dos grupos em disputa em Gaza, a partir de suas táticas e formas de organização do território, baseadas em ações de modelagem do terreno e adaptação ao campo de batalha. 

Mas claro, a depender da situação de atacante ou defensor, a cidade ou o espaço urbano, se assim preferimos, pode ser um obstáculo a se transpor ou um recurso, um ativo, no campo de batalha.

Ao longo do conflito, durante 100 dias de combate, verificamos como Israel empregou massivamente a destruição do espaço urbano, por meio de bombardeios e condução de operações de infantaria, com uso de blindados, na tentativa de desalojar a resistência palestina e inutilizar o seu espaço urbano, usado como ativo de guerra. No entanto, diferente de outros ataques em Gaza, os bombardeios aéreos foram muito mais intensos e prolongados, ocorrendo em praticamente todos os dias do conflito, e as operações militares por terra, dentro de Gaza, muito mais profundas, embora até o momento, apesar de toda a destruição que suas ações provocaram, não tenham conseguido apresentar evidências de destruição do Hamas e de qualquer outra facção de Gaza. Já os insurgentes palestinos, incapazes de efetuar uma guerra prolongada contra Israel em terreno aberto, procuraram atrair as forças israelenses para o interior de Gaza e assim impor uma derrota militar aos invasores, por meio de ações combinadas de guerrilha e guerra de atrito, que se baseiam em preparação do terreno, com a elaboração de armadilhas e abrigos subterrâneos, os conhecidos túneis, que estão sendo muito empregados em operações de ataque, na retaguarda do inimigo, provocando muitas baixas as tropas israelenses.  

Daí a pergunta, quem está vencendo a guerra em Gaza? Israel, por meio do método do urbicídio, sem dúvida foi capaz de provocar destruição da estrutura social e física no qual se apoia a vida da sociedade palestina, forçando a expulsão da população e uma verdadeira aniquilação de Gaza. Entretanto, em situação de conflito direto, corpo a corpo, contra a resistência palestina, suas tropas estão sendo severamente fustigadas em situação de conflito urbano. Muitos vídeos que circulam em grupos do Telegram e em canais especializados na cobertura do conflito, não deixam dúvida, que Israel está sofrendo com os ataques de lançadores de granadas portáteis, uma arma de apoio de infantaria, que dispara projéteis de granada capazes de nocautear blindados e tanques Merkavas, os quais, Israel, muito se orgulha de ter desenvolvido. Vídeos de soldados israelenses sendo surpreendidos por atiradores (snipers), armadilhas no interior dos túneis e dentro dos edifícios, mas também, por explosivos improvisados ou minas, no campo de batalha, são comuns na cobertura da guerra a todos que estão a acompanhar seriamente o andamento do conflito.

Diferente de outras operações em Gaza ou na Cisjordânia, os soldados israelenses, pela primeira vez, estão expostos aos ataques de insurgentes palestinos, bem treinados e preparados para o conflito. Dessa vez, eles não estão a lutar contra palestinos desarmados e sem treinamento militar, como foi, por exemplo, no período das Intifadas e tantas outras vezes, e a sua presença, prolongada no campo de batalha, os torna alvos fáceis de guerrilheiros que conhecem o ambiente urbano de combate. Essa avaliação criteriosa, nos permite dizer, que o Hamas e os demais grupos palestinos, a considerar os 100 dias de conflito, estão vencendo o combate em matéria de conflito direto, embora os danos, em Gaza, sejam de uma ordem nunca praticada por Israel antes e as consequências a longo prazo, no território, desastrosas.

 

Filmagem de operação do Hamas, em que militante da facção, ao sair da abertura de um túnel subterrâneo, instala um dispositivo explosivo magnético na blindagem de um tanque israelense. Antes do explosivo ser detonado, o insurgente ainda realiza fuga para o interior do túnel, sem ser notado pelos soldados israelenses no campo de batalha.

Fonte: canal do Telegram, 04/01/2024, data de recebimento do vídeo.


domingo, 7 de janeiro de 2024

De Gaza ao Rio de Janeiro: a guerra urbana no Brasil

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

As experiências das guerras, das últimas décadas, evidenciam o deslocamento dos campos de batalha para as cidades e aplicação de táticas e estratégicas de combate, no ambiente urbano. Isso ocorre em virtude do avanço da tecnologia militar e supremacia dos Exércitos convencionais, na luta contra grupos rebeldes de diferentes matizes, na medida em que, soldados, equipamentos e ativos militares, no campo aberto, não têm condições atualmente de sobreviver em desertos ou planícies, como vimos em muitas das principais batalhas da história.

Como resultado da evolução tecnológica no setor militar, os inimigos de potências militares ou de Exércitos convencionais, são forçados a se abrigar em cidades, na tentativa de fugir para ambientes que possibilitam oferecer maior engajamento e que também permitam utilizar o espaço urbano, em seu proveito e como esconderijo, portanto, maior resistência no combate urbano.

Logo, a cidade, é bem diferente do campo de batalha tradicional, espaço em geral amplo e aberto, o espaço urbano, por seu modo, normalmente, não possui um front ou retaguarda, tampouco deve ser tido como uma horizontalidade, uma simples superfície, mas sim um espaço profundo de várias camadas, onde o combate é sempre simultâneo à vida e a qualquer outra atividade.

O espaço urbano, enquanto campo de batalha, terreno complexo e repleto de níveis ou camadas espaciais, com muitas estruturas, ambiente em que os combates ocorrem em “espaços comuns” ou “ordinários”, em meio as salas de estar, escolas, hospitais e supermercados, isto é, em qualquer lugar, incluem no combate urbano, suas artérias, como avenidas, ruas e becos, além do interior dos edifícios e até mesmo estruturas subterrâneas, tais como galerias e redes de comunicação ou túneis, lugares que são inerentes a própria vida cotidiana, em muitas cidades. Dessa maneira, o combate urbano ocorre em meio a vida cotidiano e muitas das vezes, em áreas densamente povoadas, onde combatentes se misturam e se confundem com os civis, aumentado os riscos de “danos colaterais”.

Contudo, a guerra em ambiente urbano, não ocorre apenas em lugares distantes, em zonas de guerra, como em Gaza ou na Ucrânia, mas também, no cotidiano de muitas cidades, no mundo, que vivenciam uma aparente situação de paz, melhor dizendo, talvez, um conflito de “baixa intensidade”, como é comum no Rio de Janeiro, por exemplo. Não é um exagero ou uma confusão conceitual, dizer que há uma guerra urbana nos morros e espaços segregados da cidade, onde grupos armados como traficantes de drogas e milicianos disputam territórios com as forças armadas convencionais, numa espécie de uma luta de todos contra todos, um tipo de guerra civil. Ora, o que se vê, no caso do Brasil, mas particularmente no Rio de Janeiro, é uma guerra larvar, insidiosa, de todos os instantes, onde, na metrópole carioca, mas nas outras grandes cidades brasileiras também, os moradores dos bairros populares têm não somente uma chance muito mais elevada de morrer por ação desses diferentes grupos em disputa, como são assignados e ferrolhados a um território onde o poder é disputado entre os diferentes candidatos a soberanos, que agem como os poderes tutelares do lugar.

E a exemplo do que ocorre no Oriente Médio ou no Leste Europeu, assistimos aqui, também, à militarização dos espaços ditos segregados ou de exclusão, de cidades brasileiras, por medidas de securitização da vida e mecanismos de contenção territorial. Mas claro, isso ocorre não pela perspectiva do Norte global, de países capitalistas hegemônicos como Estados Unidos, Reino Unido, França ou do peculiar caso de Israel, onde o problema fundamental consiste naquilo que o Estado e o capital privado protagonizam em meio à chamada “Guerra ao Terror”, mas daquilo que se centra na criminalidade violenta ordinária. Assim, no primeiro caso, a expressão dimensiona fundamentalmente o contexto das fronteiras nacionais, combate a grupos terroristas e controle de minorias, por motivos étnicos e xenófobos. Já no Brasil, a militarização da questão urbana envolve sentimentos difusos e cada vez mais eivados de medo e insegurança, reverberados e retroalimentados pela mídia e pelo sistema político-eleitoral, cujo foco é a repressão interna contra o próprio povo, de fundo racista, em que heranças do período escravocrata são incorporadas num contexto de exploração de classe e racismo “hereditário”, de uma guerra urbana que ocorre nos espaços segregados das metrópoles brasileiras, contra pobres e negros. 


Charge de Jota Camelo, no Instagram, 3 de agosto de 2023. 


Mais sobre o assunto, consulte o livro “Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro”, acessando o seguinte link: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/espaco-de-batalha-e-urbicidio-na-cidade-do-rio-de-janeiro



quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Guerra urbana e os princípios do combate moderno

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Diferente dos campos de batalha tradicionais, caracterizados por espaços amplos e abertos, a guerra urbana, travada em cidades ou aldeias, sejam grandes ou pequenos centros urbanos, não possuem em geral, um front ou retaguarda, sendo os combates travados sempre em ambientes simultâneos a experiências da vida coletiva na cidade, em meio a civis, que vivem e trafegam pela cidade. Desse modo, os conflitos urbanos ocorrem em “espaços comuns” ou “ordinários”, em meio as salas de estar, escolas e supermercados, isto é, em qualquer lugar, o que inclui suas vias de acesso, como avenidas, ruas e becos, além do interior dos edifícios e até mesmo estruturas subterrâneas como galerias e redes de comunicação ou túneis, lugares que são inerentes a própria vida cotidiana, em muitas cidades.  

Contudo, o cenário da guerra urbana, mais comum hoje em dia, não é algo recente, seja nas cidades ou em fortes e castelos, tem sido uma característica da guerra desde a antiguidade. Muitos dos princípios reconhecidos que caracterizam a guerra urbana hoje eram amplamente aplicáveis no período pré-moderno, e para sua melhor adequação aos tempos modernos da guerra urbana, John Spencer, oferece uma lista útil de oito regras e os princípios fundamentais da guerra urbana moderna, que em síntese, ficam assim:

1. Os defensores quase sempre têm uma vantagem tática, especialmente em cidades, embora isso não signifique que elas necessariamente terão sucesso no nível operacional ou estratégico de um conflito

2. O terreno urbano inibe a capacidade da força atacante de usar inteligência, vigilância, reconhecimento, implantação de meios aéreos e enfrentar os defensores à distância

3. As forças atacantes têm dificuldade em alcançar o elemento surpresa, pois eles são monitorados pelas tropas de defesa, que podem permanecer escondidos dos atacantes

4. Os edifícios, especialmente os feitos de vigas de concreto reforçado ou de pedra, servem como bunkers fortificados a partir dos quais as forças de defesa podem disparar sobre as forças atacantes

5. Os invasores costumam usar munições, às vezes poderosas, para acessar edifícios e negá-los às forças de defesa

6. Os defensores têm a vantagem de uma circulação relativamente livre dentro da cidade e conhecimento íntimo de suas ruas, becos e labirintos - quando não estão sob vigilância ou ataque por veículos aéreos não tripulados ou por outros meios

7. Os defensores podem construir túneis, depósitos de armas e uma série de outras instalações subterrâneas e usá-las para acessar vários locais ao redor da cidade. Os invasores geralmente têm pouco ou nenhum conhecimento sobre esses lugares.

8. Nem as forças de ataque nem as de defesa podem concentrar os seus recursos numa localização concentrada. A concentração de forças é um dos fatores decisivos na guerra convencional no campo de batalha, historicamente, o objetivo das operações de campo era concentrar a força de alguém para dizimar o exército inimigo. A incapacidade de usar forças em massa tem desvantagens para ambos os lados, mas se for para a força de defesa que é uma força irregular e a força de ataque que é uma força militar moderna – o que aconteceu em muitos casos da guerra urbana moderna pós-Segunda Guerra Mundial – os recursos tecnológicos, numéricos, as vantagens de treinamento e equipamento de um exército moderno não podem, em muitos casos, ser aplicado tão eficazmente quanto possível em condições abertas de guerra. Assim, a força militar moderna é muitas vezes forçada a lutar junto de combatentes irregulares, com ambos os lados sendo amplamente equiparados porque carregam tipos de equipamentos semelhantes, e a vantagem de treinamento que um soldado moderno tem pode ser um tanto negada pelo conhecimento do terreno proporcionar uma defesa irregular ao combatente. Além disso, os defensores irregulares geralmente têm um tempo significativo para preparar a sua cidade para o conflito, incluindo tomar medidas como: escavar túneis, construir depósitos de munições, estabelecer posições de atiradores, implantar armadilhas e planejar emboscadas.[1]


Mosul, Iraque: outubro de 2016


[1] Tradução dos oito princípios da guerra urbana de John Spencer, The Eight Rules of Urban Warfare and Why We Must Work to Change Them, Modern War Institute at West Point, (West Point, NY: United States Military Academy, January 12, 2021), https://mwi.usma.edu/the-eight-rules-of-urban-warfare-and-why-we-must-work-to-change-them/



terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Urbanização do urbicídio em Gaza

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

O urbicídio trata da destruição do ambiente urbano, por meio de ataque às condições de existência urbana, na cidade, induzida por violência política. O conceito privilegia a destruição da vida na cidade como negação da heterogeneidade urbana, através da destruição dos equipamentos urbanos e da estrutura básica da cidade, que permitem a socialização coletiva e existência compartilhada das experiências urbanas de vida na cidade. Assim, o urbicídio abrange os meios e formas de destruição de uma dada condição urbana de existir na cidade, efetuada por artifícios militares, como parte de um programa de violência política, direcionada contra grupos ou segmentos de uma determinada população urbana, com o objetivo de destruir as condições de existência e reprodução no espaço urbano desta população, ou seja, privá-lo, em outro sentido, da vida urbana.

Todavia, o urbicídio não implica somente em destruição, já que também pode ser construtivo. Destruir para desterritorializar determinados grupos e acabar com uma dada ordem e construir para reterritorializar uma nova dinâmica, faz parte do método híbrido do urbicídio, que de forma simultânea, incorpora no processo de destruição uma nova lógica de construção dentro de uma dinâmica de exclusão e inclusão.

Para demonstrar isso, antes de Gaza, basta um breve retorno ao período da revolta de Hama, em 1982, durante o governo Hafez al-Assad, o pai do atual presidente da Síria, Bashar al-Assad, que na época, dizimou a cidade para sufocar a revolta liderada pela Irmandade Muçulmana. Dessa maneira, “o urbicídio de Hama implicou a destruição deliberada do tecido urbano inteiro da cidade e, significativamente, o processo continuou com uma reconstrução projetada para impor um novo arranjo” (SHARP, 2016, p. 128, tradução nossa). Dessa maneira, o urbicídio pode, paradoxalmente, ser generativo de novos espaços e outras configurações territoriais, enquanto alguns são expulsos, outro são territorializados.  

Tais ações, além da destruição e pilhagem, características do urbicídio, têm desenvolvido formas de expropriação de populações precarizadas, que se dão não somente pela destruição de seus equipamentos urbanos, mas também, pela apropriação ilegal da infraestrutura urbana e de uma série de usos e recursos disponíveis na cidade, como acesso a água e fontes de energia, como ocorrem, por exemplo, em Gaza atualmente, quando Israel ataca as centrais e redes de abastecimento de energia elétrica e água que abastecem o território da Faixa de Gaza. É nesse sentido que o conceito de urbicídio assume papel de instrumento de análise, para identificar formas de negação de acesso à cidade, a partir da violência política, instrumentalizada no espaço urbano, cujo uso militar é uma característica essencial. 

É assim, que o urbicídio praticado por Israel assume um comportamento híbrido, associando destruição urbana e produção do espaço geográfico, com novos projetos de urbanização de Gaza, patrocinados ou simplesmente apoiados pelo Estado, que operam pela espoliação/despossessão e configuração de uma economia-política do espaço urbano (ver Figura). A esse mecanismo, denominamos de “urbanização do urbicídio”, ou seja, uma forma de operacionalização da atividade urbicida, de cunho exploratório e espoliativo, que participa da produção do espaço urbano, gerando economias políticas predatórias, que organizam um nicho de mercadorias e serviços urbanos discriminatórios e excludentes, para não dizer ilegais.  


Figura

Construtora imobiliária israelense publicou anúncio de casas luxuosas à beira-mar, sobreposta a uma foto real de Gaza bombardeada, um exemplo de como o urbicídio opera muita das vezes pela ressignificação de outra lógica, desterritorializando no caso os palestinos, para reterritorializar israelenses no lugar. 

Fonte: RT no Instagram 22/12/2023


Nota: para uma leitura mais aprofundado sobre o tema da “urbanização do urbicídio” recomendamos a leitura do nosso livro, “Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro”, 2022. Acesse aqui: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/espaco-de-batalha-e-urbicidio-na-cidade-do-rio-de-janeiro

SHARP, Deen. Urbicide and the arrangement of violence in Syria. In: SHARP, Deen; PANETTA, Claire (Orgs.). Beyond the square: urbanism and the Arab Uprisings. New York: Urban Research, 2016, p. 118-140. 



Tensões na geopolítica da Eurocopa 2024

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça A maior competição de futebol da Europa iniciou no último dia 14 de junho. Com sede na Alemanha e com 24 equ...