domingo, 7 de janeiro de 2024

De Gaza ao Rio de Janeiro: a guerra urbana no Brasil

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

As experiências das guerras, das últimas décadas, evidenciam o deslocamento dos campos de batalha para as cidades e aplicação de táticas e estratégicas de combate, no ambiente urbano. Isso ocorre em virtude do avanço da tecnologia militar e supremacia dos Exércitos convencionais, na luta contra grupos rebeldes de diferentes matizes, na medida em que, soldados, equipamentos e ativos militares, no campo aberto, não têm condições atualmente de sobreviver em desertos ou planícies, como vimos em muitas das principais batalhas da história.

Como resultado da evolução tecnológica no setor militar, os inimigos de potências militares ou de Exércitos convencionais, são forçados a se abrigar em cidades, na tentativa de fugir para ambientes que possibilitam oferecer maior engajamento e que também permitam utilizar o espaço urbano, em seu proveito e como esconderijo, portanto, maior resistência no combate urbano.

Logo, a cidade, é bem diferente do campo de batalha tradicional, espaço em geral amplo e aberto, o espaço urbano, por seu modo, normalmente, não possui um front ou retaguarda, tampouco deve ser tido como uma horizontalidade, uma simples superfície, mas sim um espaço profundo de várias camadas, onde o combate é sempre simultâneo à vida e a qualquer outra atividade.

O espaço urbano, enquanto campo de batalha, terreno complexo e repleto de níveis ou camadas espaciais, com muitas estruturas, ambiente em que os combates ocorrem em “espaços comuns” ou “ordinários”, em meio as salas de estar, escolas, hospitais e supermercados, isto é, em qualquer lugar, incluem no combate urbano, suas artérias, como avenidas, ruas e becos, além do interior dos edifícios e até mesmo estruturas subterrâneas, tais como galerias e redes de comunicação ou túneis, lugares que são inerentes a própria vida cotidiana, em muitas cidades. Dessa maneira, o combate urbano ocorre em meio a vida cotidiano e muitas das vezes, em áreas densamente povoadas, onde combatentes se misturam e se confundem com os civis, aumentado os riscos de “danos colaterais”.

Contudo, a guerra em ambiente urbano, não ocorre apenas em lugares distantes, em zonas de guerra, como em Gaza ou na Ucrânia, mas também, no cotidiano de muitas cidades, no mundo, que vivenciam uma aparente situação de paz, melhor dizendo, talvez, um conflito de “baixa intensidade”, como é comum no Rio de Janeiro, por exemplo. Não é um exagero ou uma confusão conceitual, dizer que há uma guerra urbana nos morros e espaços segregados da cidade, onde grupos armados como traficantes de drogas e milicianos disputam territórios com as forças armadas convencionais, numa espécie de uma luta de todos contra todos, um tipo de guerra civil. Ora, o que se vê, no caso do Brasil, mas particularmente no Rio de Janeiro, é uma guerra larvar, insidiosa, de todos os instantes, onde, na metrópole carioca, mas nas outras grandes cidades brasileiras também, os moradores dos bairros populares têm não somente uma chance muito mais elevada de morrer por ação desses diferentes grupos em disputa, como são assignados e ferrolhados a um território onde o poder é disputado entre os diferentes candidatos a soberanos, que agem como os poderes tutelares do lugar.

E a exemplo do que ocorre no Oriente Médio ou no Leste Europeu, assistimos aqui, também, à militarização dos espaços ditos segregados ou de exclusão, de cidades brasileiras, por medidas de securitização da vida e mecanismos de contenção territorial. Mas claro, isso ocorre não pela perspectiva do Norte global, de países capitalistas hegemônicos como Estados Unidos, Reino Unido, França ou do peculiar caso de Israel, onde o problema fundamental consiste naquilo que o Estado e o capital privado protagonizam em meio à chamada “Guerra ao Terror”, mas daquilo que se centra na criminalidade violenta ordinária. Assim, no primeiro caso, a expressão dimensiona fundamentalmente o contexto das fronteiras nacionais, combate a grupos terroristas e controle de minorias, por motivos étnicos e xenófobos. Já no Brasil, a militarização da questão urbana envolve sentimentos difusos e cada vez mais eivados de medo e insegurança, reverberados e retroalimentados pela mídia e pelo sistema político-eleitoral, cujo foco é a repressão interna contra o próprio povo, de fundo racista, em que heranças do período escravocrata são incorporadas num contexto de exploração de classe e racismo “hereditário”, de uma guerra urbana que ocorre nos espaços segregados das metrópoles brasileiras, contra pobres e negros. 


Charge de Jota Camelo, no Instagram, 3 de agosto de 2023. 


Mais sobre o assunto, consulte o livro “Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro”, acessando o seguinte link: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/espaco-de-batalha-e-urbicidio-na-cidade-do-rio-de-janeiro



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