domingo, 16 de junho de 2024

Tensões na geopolítica da Eurocopa 2024

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça

A maior competição de futebol da Europa iniciou no último dia 14 de junho. Com sede na Alemanha e com 24 equipes participantes, poucas vezes na história, o torneio foi alvo de tantas tensões e conflitos como a Eurocopa de 2024 promete. O esporte muitas vezes reflete o contexto social e o cenário geopolítico das nações envolvidas. O futebol, por exemplo, esporte mais popular do mundo, não foge à regra e pode muito bem ser o palco de aumento das tensões ou um importante instrumento de pacificação dos conflitos.

Para compreender o cenário que envolve a Eurocopa de 2024, basta um breve olhar sobre as nações no tabuleiro da geopolítica europeia dos últimos tempos, começando pelo antigo barril de pólvora dos Balcãs. A região foi o estopim da Primeira Guerra Mundial quando o arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria, herdeiro ao trono austro-húngaro, foi assassinado em 1914 na cidade de Sarajevo. Não muito diferente do início do século passado, a região nas últimas décadas, vive em frequente ebulição desde a desagregação da Iugoslávia. No final dos anos 1980, a morte do Marechal Josip Broz, conhecido como Tito, um líder popular e importante figura da unidade nacional iugoslava, que reunia sérvios, croatas, bósnios, eslovenos, albaneses, macedônios e montenegrinos, numa mesma identidade nacional de uma frágil colcha de retalhos de uma federação de repúblicas, que compunham a Iugoslávia. Foi acompanhada de uma acentuada crise no regime socialista no Leste Europeu, assim, o súbito colapso das repúblicas iugoslavas rapidamente evoluiu para uma Guerra Civil que deixou além de 140 mil mortos, profundas feridas nos povos da península balcânica e fronteiras indefinidas na região.

Após dez anos de conflitos recheados com períodos de maior violência e breves calmarias, vividos entre 1991-2001, durante a Guerra Civil Iugoslava. O mapa da região mudou totalmente e a grande Iugoslávia desapareceu por completo dando origem a pequenos Estados (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia, Montenegro e Kosovo). No entanto, disputas territoriais continuam em pauta e as rivalidades após anos de uma paz velada, estão novamente a flor da pele na região. A Sérvia, principal força político e militar da ex-Iugoslávia, se julga vítima da agressão do Ocidente, com apoio da OTAN, que levou ao seu enfraquecimento regional e perda de territórios. Nesse âmbito, o arrastar da fragmentação da Iugoslávia com o último desmembramento do Kosovo, de maioria albanesa, mas com uma importante minoria sérvia, é outro exemplo do aumento das tensões na região e um reflexo que o conflito está longe do fim. A Sérvia não reconhece até hoje a independência do Kosovo e responsabiliza o Ocidente, por interferência da OTAN, entenda-se Estados Unidos e seus principais aliados europeus, por atuar na região contra os sérvios, antigos aliados dos russos, estimulando e apoiando movimentos separatistas nacionalistas com o propósito de enfraquecer a hegemonia regional dos sérvios nos Balcãs, o que fatidicamente culminou com o fim da Iugoslávia.

No novo mapa da região balcânica, os sérvios viram sua fronteira mudar de lugar por mais de uma vez e o seu país mudar de nome sucessivamente ao longo dos últimos anos. Um exemplo das mudanças repentinas que os sérvios tiveram que enfrentar pode ser vista, de forma ilustrativa, no caso do ex-jogador de futebol sérvio, Dejan Stankovic, que por conta das frequentes mudanças de nome de seu país, foi o único futebolista da história a disputar três Copas do Mundo por três países diferentes (figura abaixo).


Futebol Mil Grau (Facebook)

E as tensões prometidas para a Eurocopa de 2024 já vieram à tona, hoje, 16 de junho, três dias apenas após o início da competição. O problema ocorreu entre torcedores da Sérvia, da Albânia, e da Inglaterra (os famosos hooligans), que entraram em confronto na cidade alemã de Gelsenkirchen quando acompanhavam a partida da Sérvia contra a Inglaterra. Como vimos as rivalidades entre as nações balcânicas remonta aos conflitos étnicos dos Balcãs e problemas ainda maiores são prováveis de ocorrer nessa Eurocopa, nas próximas partidas, no jogo em que a Croácia enfrenta a Albânia, no próximo dia 19 de junho, e a Sérvia encara a Eslovênia, na sequência, na data de 20 de junho.

Exemplos de hostilidades entre nações da antiga Iugoslávia são frequentes em competições esportivas. Em 2018, durante a Copa do Mundo, na Rússia, muitos devem se lembrar, os jogadores da Suíça Xhaka e Shaqiri, celebraram a virada por 2-1 contra os sérvios, cruzando as mãos e entrelaçando os polegares (figura abaixo). O sinal foi uma referência à águia que integra a bandeira da Albânia, país que reconhece e apoia a existência do estado de Kosovo. Para os jogadores, a atitude tem explicação em suas famílias. Os pais de Xhaka fugiram da região dos Balcãs durante a Guerra Civil Iugoslava. Já Shaqiri, por sua vez, nasceu em Gjilan, município que pertence atualmente ao Kosovo, de maioria albanesa, mas foi com seus pais para a Suíça por causa da guerra na região.

Xhaka comemora gol contra a Sérvia fazendo alusão à bandeira da Albânia, na Copa do Mundo de 2018, na Rússia (internet)

As tensões para a Euro2024 não param por aí. O conflito no Leste Europeu, entre Ucrânia e Rússia, é o mais mortífero da Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial e pode arrastar toda a Europa para uma guerra mundial envolvendo não só os europeus, mas os Estados Unidos também, que financiam e apoiam diretamente os ucranianos por intermédio da OTAN. A Rússia está suspensa de competições oficiais da FIFA e UEFA, o que explica sua ausência da Eurocopa, mas os ucranianos se classificaram para a competição e sua presença implica em um grande aparato de segurança e aumento das tensões. Não que os russos planejem um atentado, mas a presença ucraniana em detrimento da exclusão russa das competições, de forma unilateral, expressa a tentativa de usar da competição com fins políticos, fato que os russos se queixam acusando a mídia Ocidental de manipular a opinião pública.

Manifestações políticas durante a Eurocopa podem ocorrer e são esperadas por conta da Guerra na Ucrânia e do conflito na Faixa de Gaza, com o genocídio palestino em curso que a mídia corporativa tenta esconder. Mas isso não é tudo, a ascensão de partidos de extrema direita, ligados a grupos neofascistas na Alemanha, sede do torneio, na França, na Espanha, em Portugal e outros países, são outro elemento a colocar mais pimenta no caldeirão europeu no decorrer da competição. Futebol e política andam junto na Euro2024. 



quinta-feira, 6 de junho de 2024

Urbanização do urbicídio no Rio de Janeiro

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

O urbicídio consiste no uso da violência política como meio de atacar e destruir de forma deliberada o ambiente urbano, em que se apoia a vida de um grupo ou população definida como inimigo. Na guerra da Bósnia, nos anos 1990, ao conflito na Ucrânia ou na Palestina, o urbicídio tem sido empregado para negar o espaço urbano enquanto ambiente de existência coletiva e ao destruir a estrutura urbana que ampara a vida de um determinado agrupamento, que ali habita, age no sentido de criar homogeneidades territoriais e espaços profundamente segregados por meio do uso de força militar.

No Rio de Janeiro, embora o urbicídio seja menos intenso e não implique na destruição completa da cidade ou da estrutura urbana, o método da violência política por meios militares do urbicídio, também é empregado de forma sistemática com o elemento adicional de interagir e participar da construção/produção do espaço urbano, portanto, uma forma híbrida de urbicídio. Assim, o urbicídio funciona como uma dinâmica de espoliação/despossessão, que atua de forma predatória destruindo os comuns urbanos em nossa época, pela luta do monopólio da renda urbana, ou seja, uma forma de monopólio da renda de caráter urbicida, que assume, nesse caso, uma roupagem de atividade econômica, porém ilegal e destrutiva com a participação de grupos armados como traficantes de drogas, grupos milicianos e a participação das forças de repressão do Estado.

A esse mecanismo que age pela operacionalização da atividade urbicida, de cunho exploratório e espoliativo, gerando economias políticas predatórias, que organizam um nicho de mercadorias e serviços urbanos ilegais, denomina-se de “urbanização do urbicídio”, ou seja, uma forma de espoliação/despossessão do espaço urbano, que se dá mediante ao uso de violência física e simbólica, inerente à prática de apropriação do espaço urbano e de seus recursos, com grupos armados, os mais diversos, apropriando de uma série de atividades, vinculadas à construção civil e oferta de infraestrutura e serviços na cidade. Para mais detalhes sobre o tema, aplicado ao caso do Rio de Janeiro, consulte o artigo abaixo: https://periodicos.ufrb.edu.br/index.php/novos-olhares-sociais/article/view/4738


Foto Rede Brasil Atual

terça-feira, 7 de maio de 2024

Invasão a Rafah

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Ontem, dia 6 de maio, Israel concedeu aval ao último estágio do genocídio palestino e operações de invasão a cidade de Rafah, ao sul da Faixa de Gaza, iniciaram-se, hoje, e estão em curso nesse momento. Após o Hamas realizar uma importante concessão e aceitar o cessar-fogo imposto por Israel, Benjamin Netanyahu autorizou o ataque ao último refúgio palestino na estreita faixa de terra daquele território, pelo Sul, nos limites com a fronteira egípcia. Hoje, dia 7 de maio, militares israelenses assumiram o controle do lado de Gaza da passagem de Rafah, pela única passagem entre Gaza e o Egito, um ponto de entrada crucial para a ajuda humanitária ao enclave palestino sitiado.

Rafah é uma das maiores cidades da Faixa de Gaza e por causa do conflito centenas de milhares de palestinos se refugiaram na cidade e em suas imediações, na tentativa de fugir dos ataques e combates mais intensos, que se concentram mais ao norte. Embora a região concentre a maior parte da população palestina, desde o início da guerra, com presença significativa de crianças e mulheres, Netanyahu, primeiro-ministro israelense justifica a invasão com o propósito de libertar os reféns israelenses sequestrados desde o dia 7 de outubro e com a finalidade última de eliminar o Hamas da região.  

Entretanto, o real objetivo de Israel, nem sempre dito pela mídia hegemônica, consiste, na verdade, na destruição daquilo que ainda resta de infraestrutura urbana, na Faixa de Gaza, ao colocar em prática a etapa final do plano urbicida. O "urbicídio palestino" caracteriza-se dessa forma pela completa destruição de toda e qualquer estrutura urbana que ampara a sociedade palestina, com o propósito de forçar o deslocamento da população daquela região, em mais uma onda de refugiados para os países vizinhos, em particular o Egito. Em outras palavras, o urbicídio colocado em marcha por Israel, é um método de guerra urbana, empregado contra a população civil com o objetivo de inviabilizar a existência palestina na Faixa de Gaza, ao destruir a infraestrutura física e qualquer possibilidade dos palestinos habitarem o território.

Nesse sentido, na medida em que a fome aumenta e os conflitos se intensificam na região, sobretudo nas proximidades ao muro que separa Gaza do Egito, Israel provavelmente pretende abrir a fronteira pela passagem de Rafah ou, talvez, até mesmo, derrubar o muro, provavelmente acusando o Hamas do feito, permitindo, melhor dizendo, forçando os palestinos a cruzar a fronteira em direção ao Sinai, no Egito. As intenções de Israel no prolongamento do conflito, assim atendem, portanto, a dois objetivos:


·      Completar o plano urbicida em Gaza e inviabilizar o retorno de palestinos para suas casas, ao tornar o território inabitável;
·     Tornar as fronteiras entre o Egito e a Faixa de Gaza suficientemente porosas ou abertas para impor uma fuga mássica de refugiados.


Foto de Said Hassan

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domingo, 5 de maio de 2024

Geopolítica do “Caveirão” no policiamento ostensivo do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Não é novidade que a política de segurança pública do Rio de Janeiro se transformou numa política de extermínio de inimigos. Dentro desse modelo de “in-segurança”, os mesmos policiais, que são milicianos e muitos deles associados ao tráfico de drogas ilícitas, também atuam como exterminadores de “bandidos” e de suspeitos nas favelas, à revelia da lei. Nesse sentido, vale salientar, ainda, que a construção da imagem do inimigo é o caminho utilizado para aplicar a política de exceção e de extermínio de traficantes de drogas ou qualquer pessoa definida como suspeito, na visão do pobre e negro, como perigoso. A definição da favela como território inimigo e como espaço “caótico” e “desordenado”, lugar de “bandido”, como se diz nas entrelinhas, opera a ressignificação da favela como um espaço de criminalidade, e do favelado, como inimigo. Com base nesse conceito operacional, a segurança pública coloca, em prática, políticas de guerra em operações militares em áreas urbanas densamente povoadas.

Muitos estudos e relatos dão conta da ação violenta da polícia em comunidades pobres do Rio de Janeiro, em que os policiais, não distinguindo moradores de traficantes, tratam toda a população como criminosa, adotando uma visão estereotipada, a respeito da população favelada. Alguns relatos narram inclusive, a ação policial, que ao entrar nas comunidades, cantam uma música que diz: “Vou te pegar, vou te matar, vou sugar a tua alma”. Tais ações têm gerado grande ressentimento, na população, em relação à polícia; esta, em geral, vê os policiais como piores do que os traficantes.

O blindado da polícia militar, “Caveirão”, cumpre nesse modelo de policiamento um papel importante. Esses veículos, que, em sua primeira versão, eram adaptados, são agora fabricados especialmente para a função de combate urbano em favelas e espaços segregados, densamente povoados, por conta de operações mais ostensivas, como foi a “pacificação” do Complexo do Alemão, quando o BOPE precisou apelar para veículos das Forças Armadas. O emprego do “Caveirão” é ideal em terrenos acidentados, no entanto, como muitos relatos dão conta, sua ação não é restrita ao combate urbano contra traficantes e bandidos. É comum em incursões em favelas e espaços segregados do Rio de Janeiro, o emprego do veículo em ações contra a população. Em muitos vídeos que circulam pela internet, feitos por moradores, é notável que os condutores do “Caveirão”, em certas situações, usam o veículo como uma arma de guerra, para abrir caminho sobre veículos civis estacionados.

Em um desses vídeos, que teve repercussão na grande mídia, podemos ver que um blindado da polícia força passagem em um beco estreito, danificando os automóveis dos moradores da Vila Kennedy, em Bangu, Zona Oeste do Rio, que se encontravam estacionados. Nas imagens feitas por um morador, é possível ver que um blindado da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC) atinge dois carros e uma moto, que estão estacionados nas calçadas. O morador que gravou o vídeo reclamou da conduta dos policiais: “Passou aqui, ó, viu que não dava pra passar dois carros, eu no portão, não pediu pra eu tirar o carro. Eu no portão, não pediu pra eu poder tirar o carro. Fez essa merda aí. Só coisa de trabalhador, olha as placas aí.. vai bater de novo! Vai bater de novo!! Ó, meu carro, cara, não!”, grita o homem no vídeo, enquanto o blindado retorna e passa pela via uma segunda vez e amassa os carros estacionados. Em resposta ao ocorrido, a equipe do DRFC notificou que marginais haviam colocado barricadas, em diversas vias, para dificultar a ação policial e que, em algumas vias, os moradores deixaram seus carros estacionados na rua, sem se preocuparem com a necessidade de passagem dos veículos da polícia, como se os moradores, em operações militares, se sentissem seguros para sair de suas casas para manobrar seus automóveis. Se assim fizessem, poderiam levar um tiro em situação de confronto com traficantes. É válido frisar que, na Zona Sul, jamais uma Ferrari foi atingida por um veículo blindado da polícia*.

Além de combater traficantes territorializados em favelas e espaços segregados do Rio de Janeiro, com o efeito de intimidar e amedrontar a população que vive em ambientes marcados por profunda precariedade social, o “Caveirão”, em suas ações de incursão nas favelas, atendem a uma importante função de controle social, afim de domesticar a população pobre, negra e segregada do Rio de Janeiro, a partir da configuração da favela e dos espaços segregados, como lugares de exclusão, a partir da definição da favela como território inimigo, ou seja, um espaço “caótico” e “desordenado”, lugar de “bandido”. Lugar então que justifica ações violentas da polícia no combate ao crime, mas também, contra os populares, que vivem naquele território. Dessa forma, por associação ou não ao crime, bairros populares (e as pessoas que ali vivem) são definidos como territórios inimigos, de uma guerra de classe, contra negros e pobres, trabalhadores em outras palavras.

Veículo Maverick Paramount, intitulado “Caveirão”, adquirido pelo governo do Rio de Janeiro, em exposição na Feira Internacional de Segurança e Defesa (LAAD), com pintura e brasão do BOPE.

 

Fonte: Foto de Jorge Rodrigues para a Revista Auto Esporte, em 11 de abril de 2013.

*Sobre esse fato, pode-se consultar a reportagem do G1Globo, intitulada Veículo blindado da Polícia Civil danifica carros de moradores da Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio de Janeiro, publicada em 25 de maio de 2017 e disponível no endereço eletrônico da rede de notícias (https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/veiculo-blindado-da-policia-civil-danifica-carros-de-moradores-da-vila-kennedy-zona-oeste-do-rio.ghtml). Outros vídeos similares circulam pela internet. Em um deles, na Rocinha, supostamente gravado no mês de setembro de 2017, um “Caveirão” passa por cima de algumas motocicletas, sem antes solicitar que sejam retiradas para liberar a sua passagem. Incidentes desse tipo são comuns e também foram registrados por câmeras de smartphones em 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil.

O texto acima consiste em uma adaptação de um trecho do livro “Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro”, escrito por Márcio Mendonça. Adquira o livro aqui: https://www.amazon.com.br/Espa%C3%A7o-batalha-urbic%C3%ADdio-cidade-Janeiro/dp/6525233526/ref=tmm_pap_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr= 


domingo, 21 de abril de 2024

O futuro dos drones militares no campo de batalha

Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Em vez de drones gigantes que inicialmente funcionavam como bombardeiros avançados, a tendência a miniaturização dos drones no campo de batalha, demonstra que drones pequenos e especialmente os drones kamikazes descartáveis, pequenos e muito leves, mas que podem transportar granadas antitanque capazes de nocautear blindados pesados de muitas toneladas, são aqueles que estão fazendo maior diferença e mudando a realidade do campo de batalha na Ucrânia nos últimos meses.

Drones pequenos praticamente invisíveis aos radares e até mesmo aos soldados no terreno, embora extremamente eficientes, ainda não são automatizados e muito menos controlados por sistemas de inteligência artificial, sendo a sua operação no campo de batalha, conduzido basicamente por duas equipes. Uma responsável por observar o terreno e identificar potenciais alvos, usando para essa missão, drones leves e discretos, muitos deles aparelhos comerciais empregados para a localização e marcação de alvos em mapas digitais. Essa equipe de observação é incumbida de transmitir para a equipe de ataque os dados, que com base nas informações recebidas, escolherá o tipo de drone mais adequado para a missão.

Dessa forma, se a equipe de observação identificou um elevado número de veículos e blindados, a equipe de ataque, provavelmente, optará pelo uso de drones armados com explosivos com granadas RPG, mas se a equipe de observação marcou apenas a presença de soldados de infantaria ou deposito de munições no terreno, a equipe de ataque, talvez prefira empregar drones kamikazes armados com pequenas granadas ou então drones adaptados para o lançamento de múltiplas granadas antipessoais. Todavia, para ataques em maior profundidade ou em áreas mais dinâmicas da linha de frente, o convencional é utilizar drones repetidores de sinal e com autonomia de voo maior, responsáveis por repetir e reforçar o sinal de comunicação entre o operador e o drone de observação ou ataque. Graças ao uso de drones com repetidores de sinal, pequenos drones domésticos, de uso comercial, podem ser operados a até 10 km de distância de sua base de operação, já com drones maiores e mais caros, o alcance pode chegar perto de 20 km de distância do ponto de lançamento e controle.

Percebe-se, que embora eficientes e muito ágeis no campo de batalha, um fator a fazer a diferença na guerra, o emprego de drones no campo de batalha não é algo simples, e o seu uso demanda um efetivo significativo de soldados e operadores. Por isso, um dos principais desafios no momento no que tange o desenvolvimento de missões militares com drones, é automatizar ao máximo os procedimentos envolvidos na execução das operações. Como vimos até aqui, o processo de emprego de drones pequenos e com pequena autonomia, é todo manual e por isso um elevado número de soldados são despendidos nas missões. Assim, para reduzir o contingente e tornar as missões mais eficientes, estão sendo estudadas formas de automatizar alguns de seus procedimentos, que incluem ataques contra alvos humanos.

Hoje em dia, qualquer celular é capaz de identificar o contorno de um ser humano e de mapear as feições do rosto de uma pessoa. Portanto, em teoria, essa tecnologia pode ser facilmente aplicada aos drones militares. Uma das ideias nesse campo, envolve a marcação de alvos por um operador humano, que será responsável por identificar a figura humana como um alvo e a partir daí o drone de ataque ficará responsável pela execução da operação, agindo de forma autônoma na perseguição do alvo identificado até a conclusão da operação, com a eliminação do inimigo. Com a implementação dessa tecnologia, é possível reduzir significativamente o número de soldados empregados nas equipes de ataque, já que a maior parte do trabalho será realizada somente pela equipe de observação.

Outra técnica, ainda mais avançada, que futuramente pode ser implementada, envolve o lançamento de drones totalmente autônomos, com a missão de identificar figuras humanas de forma independente, atacando-os tão logo sejam identificadas. Nesse caso, o procedimento é feito sem a intervenção humana e o operador responsável apenas, por marcar em um mapa digital uma área no campo de batalha, onde há inimigos, lançando em seguida os drones programados para identifica-los e abatê-los naquela aérea específica marcada no mapa. Nesse último caso, as equipes de ataque não estão incluídas e as de observação são reduzidas ao mínimo do contingente. Além da redução de pessoal e economia de tempo, outra vantagem, é que esses drones possivelmente não serão afetados pelas defesas eletrônicas, já que não haverá link de dados para controlá-los.

Como vimos, o emprego de drones automatizados para fins militares, não se trata de uma ficção e alguns drones domésticos já funcionam com essa capacidade. Só que em vez de serem empregados com fins civis e pacíficos, como tirar fotos para um casamento, por exemplo, eles identificarão figuras humanas e seguirão seus alvos com o propósito de eliminá-los. Para o seu azar, quando esses sistemas estiverem em uso, soldados em terreno ficaram ainda mais expostos. Agora pense na aplicação desse método em uma grande metrópole do Sul Global, constituída por bairros inteiros com inúmeros becos e vielas, com drones caçando suspeitos de crime pelas ruas e entrando em casas sorrateiramente para prendê-los, enquanto do alto, esquadrões de drones policiais, monitoraram as atividades do excedente populacional, descartado pelo sistema, em favelas e espaços segregados. Sem dúvida, uma visão do apocalipse tecnológico do capitalismo em que drones se tornaram um componente tecnológico de segurança nacional, ligando campos de batalha no exterior (do antigo mundo colonial) a zonas fronteiriças e aos espaços urbanos das megacidades do Norte e do Sul Global, onde ninguém, aparentemente, será poupado.



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domingo, 17 de março de 2024

Urbanização da guerra com os drones e dronificação do policiamento das cidades*

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Com a dronificação do espaço de batalha em diferentes cenários, os drones militares e de uso civil adaptados para combate, estão sendo cada vez mais empregados em ambiente urbano na Ucrânia, na Faixa de Gaza e em muitos outros lugares, em situações de guerra, mas também, como Ian Shaw (2016) observou, doravante, em ações de vigilância e policiamento ostensivo de significativos contingentes de população excedente que vivem em áreas urbanas e nas grandes metrópoles do Norte Global.

Por conta do aumento do desemprego estrutural e da destruição da previdência pública, um número crescente de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, são agora tratados como inimigos e uma “ameaça à segurança” doméstica de países em que a substituição de massas de trabalhadores por não-humanos é cada vez mais gerida pelo policiamento dos humanos com robôs, drones e outros aparelhos. O aumento da massa de trabalhadores descartados pelo sistema capitalista, que há muito tempo é responsável pela miséria e pelo inchaço de megacidades do Sul Global, estão se multiplicando também no Hemisfério Norte. Em muitas cidades globais a taxa de trabalhadores permanentemente desempregados, já soma uma significativa parcela da população composta por sujeitos que não trabalham e não possuem nenhuma perspectiva de conseguir algum emprego, mas que precisam ser geridas pelo sistema capitalista, por mecanismos de controle e vigilância.

Embora os drones militares e sistemas de vigilância dronificados tenham sido primeiro implantados em espaços periféricos do planeta, em áreas tribais do Paquistão, Iêmen, Somália, Afeganistão e nos territórios palestinos ocupados, em suma territórios de disputa colonial, o seu uso é cada vez mais recorrente nas metrópoles e nos grandes centros econômicos do Norte Global, com o propósito de controlar a população excedente do capitalismo. Um número cada vez maior de trabalhadores descartados do sistema de acumulação, são então, alvos das técnicas capitalistas contemporâneas de controle e vigilância aplicadas de cima para baixo, verticalmente no espaço, como parte de um programa de securitização da vida, que Ian Shaw (2016) chamou de “dronificação da violência estatal”.

Assistimos a uma nova era de caçada humana em que o policiamento aéreo, antes empregado por meio de helicópteros policiais em cidades do Norte Global, como Los Angeles (ver DAVIS, 2009) ou na (semi)periferia do sistema capitalista, a ocorrer em São Paulo e no Rio de Janeiro (ver MENDONÇA, 2019; 2022), e tantos outras cidades do Sul Global, na guerra às drogas, combate ao crime e na contenção de manifestações, é feita agora através de drones. Se até pouco tempo os helicópteros constituíam a tecnologia central para o policiamento aéreo de megacidades (ver ADEY, 2010), os drones, a partir de então, estão a constituir uma nova técnica de segurança atmosférica.

A dronificação do policiamento, está a produzir uma sofisticada geografia de segurança atmosférica do espaço doméstico e a configuração do espaço de batalha nos grandes centros urbanos das metrópoles globais. Em megacidades do Norte ao Sul Global, a dronificação dos mecanismos de securitização, fazem parte da nova etapa de criminalização da pobreza e de gestão neoliberal de controle da sociedade por meio de violência estatal. Com essa finalidade, estão a atacar os direitos sociais dos trabalhadores, aplicando uma racionalidade punitiva por meio do mecanismo de guerra civil, uma espécie de guerra de todos contra todos, na luta pela sobrevivência diária, daquilo que Pierre Dardot et al. (2021) analisou como (a atual etapa de) ataque do sistema neoliberal contra o proletariado – uma guerra, em que a população excedente não é só descartada, mas precisa ser vigiada e combatida pelo Estado capitalista.

O drone policial aparece então como uma nova técnica de segurança atmosférica, a operar de forma muito mais livre, capaz de vasculhar e perseguir suspeitos ou rebeldes na ruas e esquinas de favelas e espaços segregados de qualquer cidade ou mesmo de se infiltrar no interior de residências ou em acampamentos para policiar o excedente populacional – o novo precariado global. Como diz Chamayou (2015), os drones podem proteger e saturar a atmosfera urbana, por meio de enxames de drones policiais que equivalem a efeitos psicológicas semelhantes à de uma prisão na paisagem urbana. Em muitos lugares, as populações excedentes, como as da Palestina, já estão sujeitas a essa segurança atmo-psicológica, o terror aéreo, a partir do controle do espaço aéreo que visa atingir as suas condições existenciais, destruindo o seu habitat de cima para baixo, isto é, o atmoterrorismo de Sloterdijk (2009), uma modalidade de terrorismo atmosférico que assume a forma de assalto às condições de “vida ambientais”. O policiamento feito por drones em muitas cidades já é uma realidade da nova fase do capitalismo robótico, em que drones vigiam prédios corporativos, instalações governamentais e patrulham ruas de grandes centros urbanos. Do campo de batalha na Ucrânia e na Palestina ao espaço urbano do Norte ao Sul Global, os drones estão a povoar todas as esferas da vida e a constituir um importante mecanismo atmosférico de violência e vigilância vertical, que ao aplicar uma política de guerra e de segurança de cima para baixo, produzem profundos efeitos psicológicos em suas vítimas e ameaçam formas de vida em diferentes ambientes.

* O texto acima consiste em um trecho do livro em desenvolvimento, “Guerra dos Drones: análise e perspectiva do campo de batalha”, em etapa de conclusão, escrito por Márcio José Mendonça.


Referências bibliográficas:

ADEY, Peter. Vertical security in the megacity: legibility, mobility and aerial politics. Theory, Culture and Society, v. 27, n. 6, p. 51-67, 2010.

CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

DARDOT, Pierre [et al.]. A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021.

MENDONÇA, Márcio José. Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

______. Geografia do policiamento aéreo nas metrópoles brasileiras. GeoTextos, v. 15, n. 1, p. 89-11. jul. 2019.

SHAW, Ian G.R. The urbanization of drone warfare: policing surplus populations in the dronepolis. Geographia Helvetica, v. 71, p.19-28, 2016.  

SLOTERDIJK, Peter. Terror from the air. New York: Semiotext, 2009. 


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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O urbicídio e suas características em Gaza

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça 

O urbicídio como política de guerra contra o espaço urbano também pode ser definido como uma medida de guerra contra o terrorismo, (incluindo o terror de Estado em projetos coloniais), isto é, de antiterrorismo, conforme descrito nos trabalhos de Stephen Graham e Derek Gregory. Esta tese baseia-se principalmente na inseparabilidade da guerra, do terror, da aniquilação de lugares e do urbanismo moderno, na perspectiva de um processo de colonização, em que as cidades são percebidas, no imaginário geopolítico da elite política, como lugares “caóticos” e “perigosos”, que precisam ser controlados e disciplinados, seja pela guerra ou através de políticas de planejamento urbano nas cidades colonizadas. Assim, o urbicídio é um produto ou elemento de conflitos armados, guerras, ataques preventivos e campanhas antiterroristas. 

Em todos os casos, o urbicídio envolve a utilização de guerra, planejamento urbano militarizado e discursos de “antiterrorismo” para atingir grupos rebeldes que lutam no espaço urbano, contra colonialismo moderno. Por conta disso, o urbicídio pode ser compreendido como uma ação de coordenação de estratégias militares para destruir condições de resistência e independência. A atual campanha militar israelita na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, na Palestina Ocupada como um tudo, é um exemplo de como Israel usa da justificativa de combate ao “terrorismo palestino” para atacar o espaço urbano e promover a limpeza étnica na região.

Graham, um dos especialistas no assunto, argumenta que existem muitas estratégias israelenses que constituem urbicídio. Isto ocorre por meio da demolição de casas e espaços urbanos, na destruição intensiva de infraestruturas e no enfraquecimento sistemático da urbanização e da modernização da sociedade palestiniana pela construção de assentamentos judaicos, estradas secundárias e o Muro de Separação. Estas estratégias são aplicadas para fragmentar e minar a contiguidade e a coerência do território palestino e construir, em vez disso, um ambiente que maximize a capacidade das forças de ocupação para inspecionar, cercar e controlar as terras e populações ocupadas. Dessa maneira, podemos entender o urbicídio como uma estratégia de controle, com muitos impactos destrutivos na estrutura física do meio ambiente urbano. Ainda assim, é preciso distinguir algumas características gerais desse discurso, aplicadas na Palestina ou em outros locais, onde observamos a destruição sistemática do espaço urbano em conflitos armados.

 Para isso, Nurhan Adujidi lista cinco características do urbicídio que devem ser levados em consideração na análise de programas de índole urbicida:

1 O cenário é sempre um ambiente urbano (construído) e habitado;

2 Há sempre danos e destruição generalizada ou total infligida a esse ambiente;

3 O local de destruição é demonizado ou desumanizado – antes de ser destruído;

4 A destruição é exercida para alcançar a reconfiguração e o controle espacial;

5 A destruição é sempre premeditada, intencional e planejada.


Faixa de Gaza

Fonte: Carta Capital

Para mais detalhes sobre o debate do urbicídio e uma revisão teórica mais ampla, consulte "Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro" (Mendonça, 2022). Acesse: https://www.amazon.com.br/s?k=Espa%C3%A7o+de+batalha+e+urbic%C3%ADdio

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