Prof. Dr. Márcio José Mendonça
O conflito israelo-palestino é certamente revelador de uma política de guerra em que se visa, como alvo, à urbanidade, ou seja, a própria cidade ou o espaço urbano, se considerarmos a estrutura urbana como um todo. Ademais, a guerra entre palestinos e israelenses ocorre em termos de uma política urbicida em que ambos os lados estão atacando os espaços da vida urbana cotidiana, com armas, para interromper ou destruir a urbanidade sobre a qual se apoia a vida do inimigo. Israel, contudo, possui muita superioridade bélica: conta com satélites, tanques, helicópteros e aviões capazes de provocar o que Stephen Graham (2004a) chamou de “desmodernização forçada” da sociedade urbana palestina, isto é, uma forma de regressão econômica e social baseada na destruição da estrutura urbana; enquanto os palestinos, por seu turno, como forma de resistência aos ataques israelenses, utilizam táticas de guerrilha e, como muito se usou alguns anos atrás, atentados em ônibus e em locais públicos.
Após pesadas baixas, na década de 1980, no Líbano, Israel reorientou a
sua política de guerra, colocando, na mira, a infraestrutura social da qual depende
a sociedade palestina e a qual os combatentes utilizam como abrigo. Ariel
Sharon, assim, adotou uma estratégia direta, sustentada por uma política de
demolição de bairros inteiros pelas Forças de Defesa de Israel (FDI), na
primavera de 2002, para compelir os palestinos a um quadro de miséria e pobreza,
destruindo milhares de casas. Como se sabe, essa destruição é parte de uma
política tridimensional, que consiste em configurar o território para abrir
espaço para operações das tropas israelenses e permitir a expansão territorial
de Israel (ver GRAHAM 2004a; WEIZMAN 2002, 2004, 2012). Método que mais uma vez
está em prática em Gaza, por Benjamin Netanyahu, com uso de bombardeios e incursões de tanques e
blindados, para nivelar o terreno e impedir o uso da estrutura urbana como meio
de experiência e vida coletiva, mas também como abrigo da resistência palestina.
Tais ataques e demolições direcionadas ocorrem, em áreas estratégicas,
para inviabilizar a contiguidade territorial do território palestino, sendo as
casas cuidadosamente selecionadas, para aumentar o controle territorial
israelense, ao mesmo tempo que oliveiras são arrancadas e laranjais devastados.
Além de ataques aéreos, o urbicídio empregado como método de “desmodernização
forçada” é conduzido por tratores blindados gigantes da FDI (ver Figura), concebidos,
como diz Graham (2004b, p. 195, tradução nossa), com capacidade de “arar
através de áreas palestinas construídas”, destruindo sistemas de energia
elétrica e água, além de habitações, os seus alvos mais visados. Como enalteceu
um condutor de trator da FDI, ao derrubar uma casa palestina, estaria ele
enterrando 40 ou 50 pessoas por gerações (GRAHAM, 2004b).
Destruir qualquer possibilidade de um futuro Estado Palestino,
aniquilando a sua infraestrutura urbana e seus símbolos culturais da paisagem,
é a estratégia antiga da geopolítica de Israel para impedir a rápida
urbanização palestina e seu crescimento demográfico, dentro de Israel e nos
Territórios Ocupados, que mudariam, muito em breve, o equilíbrio demográfico,
na região, a favor dos palestinos. Esse foi, inclusive, o “alerta vermelho” de
Arnon Soffer, em 2001, demógrafo conceituado no país. Segundo ele, em longo
prazo, o futuro do Estado de Israel estaria ameaçado, com o crescimento das
cidades e aldeias palestinas. Para Soffer, o crescimento urbano, proporcionado
pelos palestinos, configuraria uma importante mudança urbano-demográfica em
desfavor dos israelenses. Graham cita os argumentos de Soffer, que faz menção a
uma suposta “ameaça existencial”, talvez se referindo à ideia de um segundo
Holocausto, se o crescimento populacional e processo de urbanização palestino
continuar:
"O
processo de urbanização em torno das fronteiras de Israel vai resultar em uma grande população árabe,
que sofre com a pobreza e a fome, em torno do Estado
judeu. Essas áreas tendem a se
tornar um terreno fértil para a
evolução de movimentos radicais
Islâmicos... Na zona árabe o processo leva a
uma urbanização de natureza
selvagem, decorrente da ausência de uma política de planejamento e,
em particular, a
falta de fiscalização e aplicação da lei de construção. Todo
mundo constrói como entende,
e o resultado é centenas de vilarejos
ilegais espalhados em todas as direções"** (SOFFER, 2001, apud GRAHAM, 2004b, p. 203,
tradução nossa).
Apropriando-se dessa lógica, Efraim Eitam, general
aposentado da FDI, concebeu os Territórios Ocupados como uma “bomba relógio
demográfica e social”, que, a qualquer momento, pode explodir sobre Israel.
Eitam enfatizou que a construção espontânea de moradias palestinas seria um
tumor cancerígeno, destruindo o Estado de Israel e que áreas urbanas e
edifícios são, na verdade, armas. Afirmações tais como as de Soffer e Eitam têm
por intuito retratar áreas urbanas palestinas como territórios incognoscíveis
que abrigam “ninhos de terroristas”. Assim, justificam políticas urbicidas e
utilizam ataques massivos e expulsão forçada de moradores de áreas urbanas,
densamente povoadas, como tem sido colocado em prática por Israel (GRAHAM, 2004b).
Figura
Foto de um trator “gigante” da Força de Defesa de Israel, denominado Caterpillar D9, muito utilizado na destruição de casas palestinas. Observe-se que o trator possui uma metralhadora acoplada ao teto.
Fonte:
Wikipedia – the free encyclopedia, s/d.
* Fragmento de texto editado do livro Espaço de batalha e urbicídio na cidade do
Rio de Janeiro, 2022. Link de acesso e vendas: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/espaco-de-batalha-e-urbicidio-na-cidade-do-rio-de-janeiro
** A. Soffer, Israel, demography 2000–2020: dangers and
opportunities, 2001.
GRAHAM, Stephen.
Cities as strategic sites: places annihilation and urban geopolitics In:
____(Org.). Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford:
Blackwell Publishing Ltd., 2004a. p. 31-53.
______.
Constructing urbicide by bulldozer in the occupied territories. In: ____. Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford:
Blackwell Publishing Ltd., 2004b. p. 192-213.
WEIZMAN,
Eyal. The politics of verticality. Open Democracy. Londres, Inglaterra, texto de 11 partes
disponibilizado entre 23 de abril e 1º de maio de 2002. Disponível em:
<http://www.opendemocracy.net/>. Acesso em: 26 de mar. 2014.
______. Strategic
points, flexible lines, tense surfaces, and political volumes: Ariel Sharon and
the geometry of occupation. In: GRAHAM, Stephen (Org.). Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford:
Blackwell Publishing Ltd, 2004. p. 172-191.
______. Hollow land: Israel’s architecture of
occupation. Nova York: Verso, 2012.
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