domingo, 31 de dezembro de 2023

Desmodernização forçada: guerra contra o espaço urbano em Gaza e na Cisjordânia*

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça

O conflito israelo-palestino é certamente revelador de uma política de guerra em que se visa, como alvo, à urbanidade, ou seja, a própria cidade ou o espaço urbano, se considerarmos a estrutura urbana como um todo. Ademais, a guerra entre palestinos e israelenses ocorre em termos de uma política urbicida em que ambos os lados estão atacando os espaços da vida urbana cotidiana, com armas, para interromper ou destruir a urbanidade sobre a qual se apoia a vida do inimigo. Israel, contudo, possui muita superioridade bélica: conta com satélites, tanques, helicópteros e aviões capazes de provocar o que Stephen Graham (2004a) chamou de “desmodernização forçada” da sociedade urbana palestina, isto é, uma forma de regressão econômica e social baseada na destruição da estrutura urbana; enquanto os palestinos, por seu turno, como forma de resistência aos ataques israelenses, utilizam táticas de guerrilha e, como muito se usou alguns anos atrás, atentados em ônibus e em locais públicos.

Após pesadas baixas, na década de 1980, no Líbano, Israel reorientou a sua política de guerra, colocando, na mira, a infraestrutura social da qual depende a sociedade palestina e a qual os combatentes utilizam como abrigo. Ariel Sharon, assim, adotou uma estratégia direta, sustentada por uma política de demolição de bairros inteiros pelas Forças de Defesa de Israel (FDI), na primavera de 2002, para compelir os palestinos a um quadro de miséria e pobreza, destruindo milhares de casas. Como se sabe, essa destruição é parte de uma política tridimensional, que consiste em configurar o território para abrir espaço para operações das tropas israelenses e permitir a expansão territorial de Israel (ver GRAHAM 2004a; WEIZMAN 2002, 2004, 2012). Método que mais uma vez está em prática em Gaza, por Benjamin Netanyahu, com uso de bombardeios e incursões de tanques e blindados, para nivelar o terreno e impedir o uso da estrutura urbana como meio de experiência e vida coletiva, mas também como abrigo da resistência palestina.

Tais ataques e demolições direcionadas ocorrem, em áreas estratégicas, para inviabilizar a contiguidade territorial do território palestino, sendo as casas cuidadosamente selecionadas, para aumentar o controle territorial israelense, ao mesmo tempo que oliveiras são arrancadas e laranjais devastados. Além de ataques aéreos, o urbicídio empregado como método de “desmodernização forçada” é conduzido por tratores blindados gigantes da FDI (ver Figura), concebidos, como diz Graham (2004b, p. 195, tradução nossa), com capacidade de “arar através de áreas palestinas construídas”, destruindo sistemas de energia elétrica e água, além de habitações, os seus alvos mais visados. Como enalteceu um condutor de trator da FDI, ao derrubar uma casa palestina, estaria ele enterrando 40 ou 50 pessoas por gerações (GRAHAM, 2004b).  

Destruir qualquer possibilidade de um futuro Estado Palestino, aniquilando a sua infraestrutura urbana e seus símbolos culturais da paisagem, é a estratégia antiga da geopolítica de Israel para impedir a rápida urbanização palestina e seu crescimento demográfico, dentro de Israel e nos Territórios Ocupados, que mudariam, muito em breve, o equilíbrio demográfico, na região, a favor dos palestinos. Esse foi, inclusive, o “alerta vermelho” de Arnon Soffer, em 2001, demógrafo conceituado no país. Segundo ele, em longo prazo, o futuro do Estado de Israel estaria ameaçado, com o crescimento das cidades e aldeias palestinas. Para Soffer, o crescimento urbano, proporcionado pelos palestinos, configuraria uma importante mudança urbano-demográfica em desfavor dos israelenses. Graham cita os argumentos de Soffer, que faz menção a uma suposta “ameaça existencial”, talvez se referindo à ideia de um segundo Holocausto, se o crescimento populacional e processo de urbanização palestino continuar:

"O processo de urbanização em torno das fronteiras de Israel vai resultar em uma grande população árabe, que sofre com a pobreza e a fome, em torno do Estado judeu. Essas áreas tendem a se tornar um terreno fértil para a evolução de movimentos radicais Islâmicos... Na zona árabe o processo leva a uma urbanização de natureza selvagem, decorrente da ausência de uma política de planejamento e, em particular, a falta de fiscalização e aplicação da lei de construção. Todo mundo constrói como entende, e o resultado é centenas de vilarejos ilegais espalhados em todas as direções"** (SOFFER, 2001, apud GRAHAM, 2004b, p. 203, tradução nossa).

Apropriando-se dessa lógica, Efraim Eitam, general aposentado da FDI, concebeu os Territórios Ocupados como uma “bomba relógio demográfica e social”, que, a qualquer momento, pode explodir sobre Israel. Eitam enfatizou que a construção espontânea de moradias palestinas seria um tumor cancerígeno, destruindo o Estado de Israel e que áreas urbanas e edifícios são, na verdade, armas. Afirmações tais como as de Soffer e Eitam têm por intuito retratar áreas urbanas palestinas como territórios incognoscíveis que abrigam “ninhos de terroristas”. Assim, justificam políticas urbicidas e utilizam ataques massivos e expulsão forçada de moradores de áreas urbanas, densamente povoadas, como tem sido colocado em prática por Israel (GRAHAM, 2004b). 


Figura

Foto de um trator “gigante” da Força de Defesa de Israel, denominado Caterpillar D9, muito utilizado na destruição de casas palestinas. Observe-se que o trator possui uma metralhadora acoplada ao teto.

Fonte: Wikipedia – the free encyclopedia, s/d.

 

* Fragmento de texto editado do livro Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro, 2022. Link de acesso e vendas: https://loja.editoradialetica.com/humanidades/espaco-de-batalha-e-urbicidio-na-cidade-do-rio-de-janeiro

** A. Soffer, Israel, demography 2000–2020: dangers and opportunities, 2001.

GRAHAM, Stephen. Cities as strategic sites: places annihilation and urban geopolitics In: ____(Org.). Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2004a. p. 31-53.

______. Constructing urbicide by bulldozer in the occupied territories. In: ____. Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2004b. p. 192-213.

WEIZMAN, Eyal. The politics of verticality. Open Democracy. Londres, Inglaterra, texto de 11 partes disponibilizado entre 23 de abril e 1º de maio de 2002. Disponível em: <http://www.opendemocracy.net/>. Acesso em: 26 de mar. 2014.

______. Strategic points, flexible lines, tense surfaces, and political volumes: Ariel Sharon and the geometry of occupation. In: GRAHAM, Stephen (Org.). Cities, war and terrorism: towards an urban geopolitics. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2004. p. 172-191.

______. Hollow land: Israel’s architecture of occupation. Nova York: Verso, 2012.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

A ameaça dos drones

Prof. Dr. Márcio José Mendonça 

Drones já são uma realidade em emprego de meios civis e estão transformando profundamente o cenário da guerra moderna, ao influenciar o comportamento de combatentes e modelar o espaço físico e sensorial do campo de batalha. Tais equipamentos, ao projetar poder e violência a longas distâncias, são responsáveis por difundir medo e uma série de efeitos psicológicos em combatentes e na população civil, mais vulneráveis do que nunca, a ação desses novos dispositivos para fins de guerra e vigilância.

Embora o emprego de drones tenha sido comum na Faixa de Gaza, no Afeganistão e no Iraque, no período pós-11 de setembro da Guerra ao Terror, conduzido por uma série de operações militares e que culminou com a ocupação do Afeganistão e do Iraque. Nos últimos anos, é notável o aumento do uso de drones na Guerra “Civil” da Síria, na Guerra de Nagorno-Karabahk, entre Armênia e Azerbaijão, em 2020 e agora, ainda mais, na Guerra da Ucrânia e até mesmo no atual conflito na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, na região da Palestina como um todo.

A guerra dos drones já começou, isso porque os drones são um equipamento versátil e fácil de adaptar ao cenário de operações de um teatro de batalha, podendo executar uma série de funções, sejam de observação, reconhecimento e levantamento de informações ao ataque direto contra alvos no terreno e equipamentos militares ou posições inimigas, por meio de mísseis ou bombas de precisão. Além disso, são de fácil operação e podem ser montados rapidamente em poucos minutos, e atuar no cenário de guerra eletrônica para atrapalhar a comunicação do adversário e como retransmissor de sinal, repetindo as comunicações de rádio e de dados de estações distantes, permitindo correções dos alvos, em segundos, com alta precisão. É inquestionável que os drones chegaram para ficar e o seu o impacto, nos conflitos militares modernos, têm transformado o campo de batalha dos conflitos atuais.

Imagens de soldados na Guerra da Ucrânia desesperados, tentando atirar em drones sobre suas cabeças, fugindo a pé das aeronaves não tripuladas que os perseguem, importunam combatentes nas trincheiras ou de soldados que são filmados, em primeira pessoa, implorando para não serem mortas pelos drones, viralizam na internet e são comuns no combate moderno, na guerra das câmeras e registros audiovisuais.

Vídeos dos drones Bayraktar desde a guerra entre Armênia e Azerbaijão, destruindo veículos blindados, equipamentos de artilharia e massacrando tropas em solo, de forma totalmente desprotegidas e vulneráveis aos drones, fizeram muitos analistas militares acreditar que estavam vendo o aparecimento de uma arma de guerra, quase invencível no campo de batalha. Todavia, bastou os russos se adaptarem as características de ação dos Bayraktar e reconfigurado os seus radares, para que fossem capazes de exibirem alvos que, até então, eram automaticamente descartados. Hoje os russos já são capazes de abater muitos tipos de drones ainda em voo, mas isso não significa que os drones perderam sua utilidade, muito pelo contrário, tropas com menor cobertura de defesas antiaéreas continuam vulneráveis a sua ação no campo de batalha e os civis de modo geral, embora não sejam combatentes e necessariamente não estejam inseridos num campo de batalha, são cada vez com maior frequência, alvos da ação de drones.

Na Cisjordânia, por exemplo, imagens recentes mostram a ação de um drone israelense patrulhando a região de Hebron e enquanto sobrevoa sobre um agrupamento de palestinos, o drone por meio de seu alto-falante os ameaça: 


“Nós estamos os avisando: cuidado. E cuidado com seus filhos. Qualquer um que pensar em fazer algo: nós os encontraremos e, se necessário, o mataremos”.

E ainda na sequência do vídeo, um aldeão, apavorado, procura dialogar e pede para que o drone enviado por Israel, os deixe em paz: 

          “Nós não estamos fazendo nada. Nos deixem em paz”.



Drones israelenses ameaçam palestinos - Geopolítica Hoje no Instagram - Dezembro de 2023


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Urbicídio: aniquilação total de Gaza

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça

Imagens aéreas de Gaza:
antes e depois 
Fonte: RT
Urbicídio é um fenômeno de violência política, por uso de meios  militares, praticado no espaço urbano, com o objetivo de destruir as  condições de existência e reprodução no espaço de um determinado  grupo. O termo evoca a destruição do espaço urbano como política de  guerra na cidade. Desta forma, seu significado expressa um conteúdo  letal e é constituída pela inserção do sufixo “-cídio”, de genocídio, ao  vocabulário “urbano” e, em inglês, urbicide

Em outras palavras, urbicídio refere-se à destruição do urbano como condição de privar um determinado grupo o exercício da vida urbana e do acesso ou uso dos recursos da cidade e da infraestrutura urbana em sentido mais amplo. Urbicídio, compreende-se, por esse viés, então não só a destruição do espaço físico urbanizado, que possibilita a vida na cidade enquanto instância urbana, mas a cultura e memória da cidade, ao destruir o substrato, que permite a existência da multiplicidade em situação de vida urbana.

No cenário atual de guerra urbana em Gaza e por causa da destruição do ambiente urbano, incluindo a destruição dos diferentes tipos de estrutura urbana, o que incluem escolas, hospitais e sistemas de rede elétrica e de água, é o uso do espaço urbano que está em jogo no atual processo de destruição da Faixa de Gaza e de todo o seu território urbanizado. Por isso, faz-se necessário revisitar o conceito de urbicídio, para entender o momento paradigmático que vivemos hoje, em Gaza, com a destruição da estrutura como método de guerra e técnica de genocídio na/da cidade, não só eliminando diretamente indivíduos, com ataques a civis, mas da destruição ampliada de toda a estrutura urbana que sustenta a vida, tornando inabitável o território de Gaza.

Com ataques diretos de bombardeios e os efeitos colaterais das bombas, o número de vítimas certamente é alto, como ocorre em Gaza, podendo o número de vítimas letais alcançar algumas dezenas de milhares mortes, isso se considerarmos as estimativas mais conservadoras, contudo, com a destruição de toda a estrutura urbana e os efeitos no território a longo prazo na população, certamente o número será muito maior. Sem habitações, rede de água e de esgoto tratado, e com a provável proliferação de doenças, o número de vítimas rapidamente irá inflar muito revelando o terror do método do urbicídio, usado por Israel na guerra em Gaza contra a população palestina.

Adquira logo o livro "Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro"!!!

O livro que conta com prefácio do prof. Rogério Haesbaert e apresentação do prof. Cláudio Zanotelli, resulta da pesquisa de doutorado, de Márcio José Mendonça, trabalho que recebeu Menção Honrosa do Prêmio Capes de Tese de 2020 na área de Geografia e que agora é adaptado em forma de livro, nesta publicação. 

“Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro” é um livro, ao mesmo tempo, ousado, atual e extremamente necessário para compreender dois fenômenos chave da contemporaneidade: a exacerbação da violência e a militarização que a acompanha, tudo isso envolvido numa releitura da “construção do espaço” em que a (necro)política policial – simultaneamente “legal” e “ilegal” – tem um papel cada vez mais decisivo. Através dos discursos armamentistas emblemáticos de líderes de extrema direita que chegam ao poder, como Duterte nas Filipinas e Bolsonaro no Brasil, temos o ápice desses tempos em que a maior violência, a da desigualdade, é atacada não em sua fonte, que é profunda e sistêmica, mas apenas em alguns de seus efeitos, na perversa contenção territorial e militarizada das classes e grupos mais subalternizados. Prof. Rogério Haesbaert. 

O livro está disponibilizado em sua versão física para compras no site da Editora Dialética no seguinte link: https://loja.editoradialetica.com/loja/produto.php?loja=791959&IdProd=1244243765&iniSession=1&624600d9203c1

E para aqueles que preferem o E-book, muito mais barato, o link é este: https://play.google.com/store/books/details/Márcio_José_Mendonça_Espaço_de_batalha_e_urbic%C3%ADdio?id=RrRoEAAAQBAJ&gl=br

Quem prefere o Kindle ou comprar o livro físico pela Amazon, pode acessar: https://www.amazon.com.br/Espa%C3%A7o-batalha-urbic%C3%ADdio-cidade-Janeiro/dp/6525233526/ref=mp_s_a_1_1?crid=2RN16VW4JUK9I&keywords=espa%C3%A7o+de+batalha&qid=1680899763&sprefix=%2Caps%2C1168&sr=8-1


Tensões na geopolítica da Eurocopa 2024

 Prof. Dr. Márcio José Mendonça A maior competição de futebol da Europa iniciou no último dia 14 de junho. Com sede na Alemanha e com 24 equ...